Nas últimas décadas, a evolução do "status¨ da mulher na sociedade e a crescente participação da mão-de-obra feminina no mercado de trabalho são conquistas inegáveis. Mas os avanços não tem ocorrido de forma uniforme num país de dimensões continentais como é o Brasil e nem as conquistas têm alcançado, de forma igualitária, mulheres de diferentes classes sociais.
É muito mais difícil para uma mulher negra, favelada e de baixa escolaridade conseguir se inserir no mercado de trabalho. Mais difícil ainda é ganhar projeção em sua atividade. Já as brancas bem nascidas em famílias estruturadas, e com acesso à universidade, realizam com mais facilidade seus projetos de vida, dando cor e brilho aos seus sonhos.
A razão que me levou a indicar entre as homenageadas de hoje uma mulher negra, moradora das palafitas do Dique da Vila Gilda, sem títulos e diplomas, mas com muita fibra e disposição de luta, visa justamente corrigir as distorções que costumam ocorrer em festividades como a que comemoramos hoje, alusiva ao Dia Internacional da Mulher.
A mídia não coloca seus holofotes em mulheres faveladas. A não ser quando um filho é vítima de alguma bala perdida ou quando o barraco pega fogo.
No caso de Valdete de Moura Santos, 41 anos uma das homenageadas desta noite, (mãe de um rapaz de 24 anos, Jéferson Moura da Silva, filho de seu primeiro casamento, e de uma garotinha de 3 anos, Laleska, de sua segunda união, com Edson Carlos dos Santos), queremos, de forma emblemática, enaltecer a trajetória de luta de milhares de mulheres anônimas, as verdadeiras heroínas de um país onde persiste a desigual e pérfida distribuição de renda.
A Constituição Federal, em vigor desde 1988, demonstrou grande preocupação em defender a igualdade entre homens e mulheres de qualquer raça, credo ou nacionalidade, figurando a norma igualdade entre os cinco direitos invioláveis, ao lado da vida e da liberdade.
Mesmo a Carta de 1988, que deu mais direitos à mulher, não significou o surgimento de uma nova ordem social e familiar, especialmente nas classes menos favorecidas. Liberdade para sair de casa, estudar e trabalhar não significou para uma grande fatia de mulheres mais qualidade de vida Significou trabalho redobrado, já que a dupla jornada no emprego e no lar é estafante, leva ao stress e agrava eventuais problemas de saúde.
Os números publicados pelo IBGE neste mês, diagnosticando a inserção da mulher no mercado de trabalho trazem alguns dados positivos, quando analisados sob a ótica de oportunidades. O nível de ocupação de mulheres subiu de 45,5% em 2004 para 46,4% em 2005.
As mulheres, nos últimos anos, também conseguiram penetrar em algumas profissões que antes eram redutos masculinos, como a de motoristas de ônibus. Hoje há estimativa de que 10% de mulheres trabalhem no setor.
Também avançou de forma impressionante o número de mulheres que ingressam em universidades e galgam postos em grandes empresas.
Mas persiste o desafio de conquistar salários justos. Em muitos setores continuam inferiores aos valores pagos aos homens, mesmo quando as funções são semelhantes.
Enfim, nada disso é novidade, como também não existe nada a comemorar quando tomamos conhecimento das estatísticas sobre violência doméstica ou do abandono do lar por maridos e companheiros, que acham mais prático sumir no mundo e deixar para as mulheres o sustento da prole e do lar. É significativo o número de mulheres provedoras do lar.
O que torna Valdete especial, nesse caminhar da humanidade, abandonada pelo primeiro companheiro quando o filho tinha apenas 4 anos, foi sua consciência cidadã na busca da verdadeira identidade e de melhores condições de vida para seus semelhantes.
Há duas décadas, quando tinha apenas 21 anos e um filho de 3 anos para cuidar, colaborou decisivamente para a formação da Creche Comunitária Cantinho da Criança, ao lado de outras mães do Dique da Vila Gilda e de duas assistentes sociais da Prefeitura.
Inaugurada no dia 20 de setembro de 1987, inicialmente situada à Rua Tenente Durval do Amaral, 206, no Jardim Rádio Clube, a creche representava o sonho de muitas mães, que tinham seus barracos montados sobre o rio dos Bugres. Elas provaram ser possível criar a primeira creche comunitária da Cidade, arrecadando doações, trabalhando muito e vencendo todo tipo de dificuldades.
Inicialmente, a creche atendia 30 crianças de dois a seis anos. Duas mães cuidavam das crianças mediante um salário mensal simbólico. Valdete, primeiro como voluntária e depois com remuneração simbólica fez da creche seu segundo lar, transformando os filhos das vizinhas, em seus próprios filhos.
Foi faxineira, merendeira, pajem, monitora, e nos últimos anos, com a expansão da creche, tornou-se inspetora de alunos. A entidade abriga hoje 185 crianças, ocupa três imóveis na Rua Esculápio César de Paiva, 408, no Rádio Clube e emprega 34 funcionários. Essa obra social construída tijolo a tijolo se cruza com a vida da sócia fundadora, nossa homenageada.
Lamentavelmente, a placa que hoje oferecemos a essa mulher do povo, sobrevivente do seguro social, negra, favelada e com a saúde abalada, é muito pouco por sua história de vida e pelo bem que já proporcionou à sua comunidade.
Torcemos por sua recuperação Valdete. Temos certeza que sob a proteção de Deus você vencerá mais essa batalha, derrubando a indiferença de muitos, como derrubou há 20 anos, os obstáculos que impediam a criação de uma creche comunitária na zona mais pobre da Cidade.
Parabéns e que Deus a abençõe !
BENEDITO FURTADO