16/04/04 - Discurso Frei Rozântimo

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Todo mundo sabe que gosto de ilustrar as homilias com histórias. Por isso vou ler um texto pequeno, mas que tem tudo a ver com minha presença aqui hoje:  

Diz-se que antes do rio desaguar no oceano, ele treme de medo.
Olha pra trás, para toda sua jornada: os cumes, os vales, as montanhas, o longo e sinuoso caminho pela floresta, pelos povoados e vê a sua frente um oceano tão vasto que entrar nele nada mais é que desaparecer para sempre.

Mas não há outra saída. O rio não pode voltar. Ninguém pode voltar. Voltar é impossível na existência. Você pode apenas seguir em frente.

O rio precisa se arriscar e entrar no oceano.
E somente quando ele entra no oceano é que o medo desaparece. Porque só então o rio saberá que não se trata de desaparecer no oceano, mas tornar-se oceano.

Por um lado é desaparecimento e por outro lado é renascimento. Assim somos nós.
Só podemos ir em frente e arriscar.

Foi exatamente isso que aconteceu comigo. Cheguei no dia 11 de fevereiro de 1992 ao Santuário de Santo Antonio do Valongo, com seu telhado desfeito, goteiras por todo canto, encanamento antigo e obsoleto, parte elétrica danificada... Olhando para trás pensei na comunidade organizada e na pequena e acolhedora cidade de onde tinha chegado e tive vontade de voltar.

Os problemas eram maiores do que poderia supor um frade com poucos anos de ordenaão, vindo de longe com vontade de trabalhar mas com pouca experiência administrativa.

Apenas boa vontade não era suficiente. Apenas desejo de transformar o que via também não bastava.

Só com o tempo compreendi que Deus tinha me trazido até aqui com um fim determinado e que iria providenciar tudo, passo a passo, me usando como instrumento.

O começo foi muito difícil. O povo não ia mais ao Valongo com receio de assaltos porque a escuridão e o abandono tomavam conta da rua São Bento. O pouco dinheiro que entrava mal dava para manter os dois frades no convento. O Valongo tinha deixado de ser paróquia e não celebrava mais casamentos.

Começamos fazendo uma solicitaão ao bispo pedindo a volta dos casamentos. Depois começou a fase de busca de recursos para os primeiros pequenos consertos necessários, começando pelo telhado.

Resumindo a história que todo mundo já conhece a luta era diária, não havia trégua: consertava-se uma coisa e logo se descobria outra avariada. 

Mas o povo começou a voltar ao Valongo. As missas começaram a ter cada vez mais gente, os encontros de catequese trouxeram as crianças de volta, os casamentos contribuíram para que o Santuário renascesse.

Com o tempo houve a necessidade de um trabalho social que atendesse a populaão de rua e nasceu a “Pastoral dos Excluídos” contando com poucas pessoas mas com muita vontade de minorar o sofrimento do povo que buscava comida mas também resgate da dignidade perdida.

E o pequeno rio tornou-se oceano. Já não havia mais medo, nem vontade de voltar atrás. A dificuldade diária era recompensada pela alegria do povo lotando a igreja em dias de missa, pelas bem celebradas trezenas de Santo Antonio que traziam multidões ao Valongo, pela devoão do povo a Frei Galvão e as suas pílulas, pelas pastorais funcionando admiravelmente, pelos sacramentos voltando a ser celebrados no Valongo....

O restauro do Valongo, que parecia um sonho distante, aconteceu porque contou com a providência divina, com trabalho árduo e diário, muitas reuniões, muitas horas passadas em salas de espera, muita teimosia e perseverança. As pessoas que se envolveram também foram determinantes: os funcionários do Santuário, os benfeitores da Fraternidade Reconstrutora Antoniana, empresários, o governo estadual e municipal e, principalmente, o povo simples que colaborava dentro das suas possibilidades e, muitas vezes, a despeito de sua própria indigência.

O povo que ajudou tomou consciência de que a luta tinha que ser assumida por todos porque o Valongo pertence ao povo desta cidade. Sempre disse que um dia iria embora, que abraçar a vida religiosa significa chegar e partir muitas vezes.

Volto a Santos sempre que é possível e tenho orgulho de olhar a fachada branquinha do Valongo, a rua livre do tráfego de caminhões, os turistas visitando a igreja e comentando sobre a beleza arquitetônica. Tenho orgulho de ter sido parte de tudo isso, fico feliz por ter seguido em frente e por ter desencadeado as mudanças que se seguiram.

Queria aproveitar este momento para lembrar dos que já partiram mas deixaram suas marcas impressas na minha história.

Dona Cotinha, quase centenária, toda terça-feira montando sua barraquinha de artigos religiosos na porta da igreja e no final do dia trazendo o parco rendimento que, muitas vezes, foi a nossa salvaão.

João, o sacristão zeloso, cuidadoso de cada pequeno detalhe, com eterno sorriso no rosto e palavras sempre doces na boca.

Senhor Ribela, que sempre procurava os trabalhos mais humildes, aqueles que ninguém queria fazer.

E a inesquecível Isabel, mulher sofredora e corajosa, dotada daquela sabedoria que só os muitos simples costumam ter, iluminando a vida do convento com alegria e bom humor.

Gostaria que uma das pessoas que colaborou para o renascimento do Valongo se sentisse homenageada hoje junto comigo.

Para terminar queria dizer que na vida tenho três grandes amores.

O primeiro é a igreja de Jesus Cristo, em cujas fileiras caminho desde pequeno, levado pelas mãos de meus pais. Igreja que ousa optar pelos que sofrem, que tem a coragem de se admitir pecadora, reconhecer os erros cometidos no passado e pedir perdão quando necessário.

O segundo é o Santuário de Santo Antonio do Valongo, minha casa durante nove anos, local para onde sonhava voltar após longas viagens, lugar onde me escondia nos dias de tristeza, cenário dos melhores anos da minha vida.

O terceiro é esta cidade que me acolheu como filho amado, cidade que ainda faz meu coraão disparar quando, descendo a serra, vejo suas luzes ao longe.

Chegar a Santos ainda é chegar em casa. Estar em Santos significa estar cercado de amigos e de bem querer. E é isso que me faz voltar sempre.

Obrigada pelo prêmio e pela homenagem.

Termino com uma observaão de quem viveu isso até as últimas as conseqências.

Coragem! Não tenha medo! Torne-se oceano!

Frei Rozântimo
em 13 de agosto de 2004